O FLAMENCO

ana nicolau

Foto: Sandra Toledo

“ Você dança o quê?

-Flamenco.

-Flamengo?

-Não, FlamenCo.

-Ahhhh…”

E nuvens de confusão se formam acima da cabeça do interlocutor ao ser convidado a trocar o “g” pelo “c”. O diálogo acima já foi vivido muitas vezes por quem dança flamenco. Se quem pergunta está ali conversando com você é porque no mínimo, ficou interessado pelo baile, ainda que seja um não iniciado nos flamenquismos. Mas aquele “c” ali no final da palavra não o deixa ir muito longe, e num disparate pode chegar a imaginar Romário sapateando. Brincadeiras e confusões fora, mesmo um apreciador da dança ou entusiasta do movimento, já deixou escapar uma ruguinha de incompreensão, aquela que se forma entre as duas sobrancelhas, buscando nas gavetas empoeiradas da memória: o que é mesmo esse flamenco? Sim, conheço, já ouvi falar, já vi. Mas aquele “c” ali no final da palavra não o deixa ir muito longe.

Calma corazón, como diria amigo espanhol meu. Ou melhor tranquilo, tranquilito. Tenemos tiempo.

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Foto: Sandra Toledo

El TiempoPILULA FLAMENCO PATRIMONIO CULTURAL
O Flamenco hoje é considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. Mas foi um longo caminho para chegar até aqui, a linha do tempo do Flamenco é antiga. Muito antiga. E se concentra na região da Andaluzia, conhecida por ter sido foco de invasões e cruzamento de culturas durante séculos.

A origem do flamenco deriva de todas as influências que aquelas terras do sul da Espanha receberam. É uma grande mistura. Começa lá com o império bizantino e um certo canto religioso que escapava das missas, misturado a quase 800 anos de permanência da música e poesia pré-islâmica, que durante certo tempo conviveu em paz com a música judia das sinagogas. Percebia-se também que no cante havia algum parentesco com a linha melódica da música hindu, e lá pela metade do século XV coincidiu que a grande diáspora cigana entrou na Península Ibérica vinda da Índia e espalhou-se pela Europa. Não por acaso acharam e que a Andaluzia era um bom lugar para montar acampamento. Soma-se a tudo isso o legado africano deixado pelos negros que passaram por Sevilha e arredores, já que a cidade foi um importante entreposto de escravos no século XV.

PILULA FLAMENCO EXPRESSÃO MESTIÇADaí foi só esperar as influências serem assimiladas e transformadas, numa espécie de antropofagia andaluza, e alguns séculos mais tarde, lá pelo século XVIII já se tem documentos que comprovam que ali havia se formado o flamenco, tal como conhecemos hoje: expressão mestiça que soube mesclar todas as influências recebidas com o folclore local assimilá-lo, decantá-lo e transformá-lo em arte. Capaz de criar uma maneira própria de tocar o violão, – la guitarra para eles- uma forma única de dançar (pés de cigana, quadris de negra, braços de andaluza) e também o genuíno cante flamenco, que nunca economizou uma nota para expressar os mais variados e profundos sentimentos da alma humana.

El Arte

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Quem assistiu a um par de apresentações flamencas pode perceber que há algo em sua expressão como arte que se repete. E não seria absurdo perguntar: Porque o cante e o baile flamencos são sempre tão dramáticos, intensos e de emoções? De onde vêem tantos lamentos? A Villa tenta decifrar o que há por trás de tantos “ays”.

Em primeiro lugar deve-se dizer que além do nome usual, o flamenco também é conhecido como arte jondo. Jondo, é uma maneira à la andaluza de dizer profundo, hondo, em espanhol. Assim nos localizamos no terreno onde o flamenco é senhor supremo: o reino do primitivo e do profundo, da arte fabricada nas entranhas onde a emoção pura é desenhada no corpo da bailaora e um grito rouco rasga a garganta abrasada do cantaor.PILULA FLAMENCO REINO PRIMITIVO E porque é dessa maneira que eles se expressam? Na farta lista de influências e contribuições para a formação do flamenco, não podemos nos esquecer, estão os ciganos. E quem ilumina a questão são os autores espanhois Molina e Mairena, ao afirmarem que os ciganos contribuiram com sua paixão e seu sentido trágico da vida. Assim soma-se a essas letras que falam de morte, vida, finitude, amor, trabalho, que se debruçam sobre as angústias do homem, a contribuição cigana: sua cultura, sua tendência ao trágico, a esticar a corda das emoções até o limite, seja no baile ou no cante. Mas porque sempre tão dramático? Nem sempre, é preciso lembrar, nem sempre. Cada ritmo ou estilo do flamenco carrega sua história, sua natureza expressiva forjada a centenas de anos. As “alegrías” por exemplo -um desses estilos (chamado de palos por eles) – não nega sua marca festiva, sua dança leve e airosa. Muito diferente de uma seguiriya e ou de uma soleá, – dois ritmos emblemáticos do flamenco- que são sim graves e carregados de solenidade. Na teoría tudo fica muito distante, é preciso ouvir, ver, para entender.

La Magia

PILULA FLAMENCO GITANOSO bom intérprete é aquele que quando se emociona, divide e expande o sentimento até a platéia, quando ri, nós, o público também nos contorcemos com ele. Esse artista dos bons tem o poder de lançar tudo o que sente como uma flecha a quem o assiste.

No flamenco não poderia ser Fiesta 15diferente, e essa característica é ainda mais forte e tem nome. Por isso não se preocupe se ao assistir a um espetáculo de flamenco alguém perto de você dizer sobre aquele artista no palco: “Ele (a) tem duende”. Seguro que não estão falando do serzinho verde e orelhudo que aparece e desaparece. No flamenco a frase que já esteve em alta nos de vidros de carros “Eu acredito em duendes” faz todo sentido. Ninguém torce o nariz. É elogio dos máximos. É mais ou menos assim: é chamado de duende, ou possuidor de duende aquele que quando da sua performance depreende algo que de tão misterioso e magnético é incomunicável no momento mas acende sem licença o inconsciente do público e causa reviravolta nPILULA FLAMENCO MISTERIOSOos seus estômagos. Talvez já tenha acontecido com você, ao escutar uma música flamenca ou mesmo assistir a um baile. Se alguma vez parecia que o músico dedilhava a guitarra tocando as cordas das suas entranhas ou mesmo se era no seu coração que aqueles dedinhos roçavam, fazendo-o acelerar, você já foi tocado pelo misterioso duende. Na verdade o intérprete foi tocado por ele e generosamente o canalizou através de sua arte até você. Para quem se interessar vale ler “Teoría y Juego del Duende” escrito por Frederico García Lorca. O tema é daqueles complexos mas na prática não é tão difícil observar a chegada do duende: se alguma vez assistindo flamenco você sentiu aquela pequena apnéia de deslumbre com algum intérprete, e você não foi o único (todos pareciam suspender a respiração) ou quando percebeu estava na beira da cadeira e um olé escapou da sua boca, sem você o convocar e encontrou eco com outros olés, então sim você o conhece.

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